sexta-feira, 29 de abril de 2016

ABDIAS DO NASCIMENTO - TRECHOS DA INTRODUÇÃO AO LIVRO 'O QUILOMBISMO'



Abdias do Nascimento nasceu em Franca, SP, em 1914, o segundo filho de Dona Josina, a doceira da cidade, e Seu Bem-Bem, músico e sapateiro. Abdias cresce numa família coesa, carinhosa e organizada, porém pobre, e vai se diplomar em contabilidade pelo Atheneu Francano em 1929.

 COMPRE O LIVRO: O quilombismo: Documentos de uma militância Pan-Africanista (Português) Capa comum – 12 março 2019 - por Abdias Nascimento



Com 15 anos, alista-se no exército e vai morar na capital São Paulo. Na década dos 1930, engaja-se na Frente Negra Brasileira e luta contra a segregação racial em estabelecimentos comerciais da cidade. Prossegue na luta contra o racismo organizando o Congresso Afro-Campineiro em 1938. Funda em 1944 o Teatro Experimental do Negro, entidade que patrocina a Convenção Nacional do Negro em 1945-46.

A Convenção propõe à Assembléia Nacional Constituinte de 1946 a inclusão de políticas públicas para a população afro-descendente e um dispositivo constitucional definindo a discriminação racial como crime de lesa-pátria.


À frente do TEN, Abdias organiza o 1º Congresso do Negro Brasileiro em 1950.
Militante do antigo PTB, após o golpe de 1964 participa desde o exílio na formação do PDT. Já no Brasil, lidera em 1981 a criação da Secretaria do Movimento Negro do PDT.

Voltando ao Brasil, Abdias atua com entidades afro-brasileiras. Quando organizam o ato público de 1978 contra o racismo, ainda há um clima de repressão. Enfrentam o desafio e criam o MNU e o Memorial Zumbi, mobilizando os negros em várias regiões do país.

O 3º Congresso de Cultura Negra das Américas dá uma dimensão internacional a essa militância.

Como deputado, Abdias ajudou a levar as posições do movimento negro aos presidentes Tancredo Neves e José Sarney e aos seus ministros. Atua na desapropriação da Serra da Barriga e na questão das comunidades-quilombos. Leva à tribuna federal o questionamento do 13 de maio e a definição do dia 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra.

Em 1988, o centenário da abolição coincide com a Assembléia Constituinte, e a repressão policial à manifestação pública do dia 13 de maio, no Rio de Janeiro, contrasta com as vitórias alcançadas na nova Constituição.

O saldo é positivo: a proposta de políticas públicas anti-racistas ganha dimensão, legitimidade e apoio. Vários governos municipais e estaduais instituem assessorias e conselhos de direitos do negro.


Depois de 1988, o movimento negro continua crescendo e conquistando posições. O movimento sindical começa a incorporar essa causa e a representação parlamentar afro-brasileira amplia-se.

Marcos importantes são o Tricentenário da Imortalidade de Zumbi dos Palmares e a 3ª Conferência Mundial Contra o Racismo.

A marcha a Brasília, em 1995, a criação de um grupo no governo para estudar políticas anti-racistas e o processo de mobilização para a 3ª Conferência Mundial conduzem à adoção de ações afirmativas no próprio governo e em algumas universidades públicas.

O movimento negro ganha força articulando-se com outros no Brasil e no mundo. O governo Lula cria a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, SEPPIR. O tema do racismo, antes silenciado, ganha outra dimensão de debate na sociedade brasileira.


Na qualidade de primeiro deputado federal afro-brasileiro dedicou seu mandato à luta contra o racismo (1983-87), apresentando projetos de lei definindo o racismo como crime e criando mecanismos de ação compensatória para construir a verdadeira igualdade para os negros na sociedade brasileira. Como senador da República (1991, 1996-99), continua essa linha de atuação.

O Governador Leonel Brizola o nomeia Secretário de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras do Estado do Rio de Janeiro (1991-94). Mais tarde, é nomeado primeiro titular da Secretaria Estadual de Cidadania e Direitos Humanos (1999-2000).

No 2º Congresso de Cultura Negra das Américas (Panamá, 1980), Abdias apresenta sua tese do quilombismo.

Os quilombos são uma das primeiras experiências de liberdade nas Américas. Eles tinham uma estrutura comunitária baseada em valores culturais africanos. Sua organização política era democrática. Seu modelo econômico era o contrário do modelo colonial.

Em vez de produzir um item só para exportação e depender da matriz imperial, tinham uma produção agrícola diversificada que provia seu próprio sustento e mantinham relações de troca e intercâmbio com as populações circundantes.

O quilombismo propõe esse legado como referência básica de uma proposta de mobilização política da população afrodescendente nas Américas com base na sua própria experiência histórica e cultural. Vai mais longe ainda, e articula uma proposta afro-brasileira para o Estado nacional contemporâneo, um Brasil multiétnico e pluricultural.

As medidas e os princípios propostos estão no texto A B C do Quilombismo.



TRECHOS DA INTRODUÇÃO AO LIVRO 'O QUILOMBISMO'

Como os conjuntos de políticas públicas articulados e encaminhados ao Governo pelo movimento negro em dois momentos posteriores - a Marcha Zumbi dos Palmares de 1995 e o processo da 3ª Conferência - , o quilombismo é também herdeiro de um movimento social que, já em 1945, apresentava suas propostas à Assembléia Constituinte encarregada de redemocratizar o país (Nascimento, 1982[1968]).

A singularidade de O quilombismo está no fato de apresentar uma proposta sócio-política para o Brasil, elaborada desde o ponto de vista da população afrodescendente. Num momento em que não se falava ainda em ações afirmativas ou compensatórias, nem se cogitava de políticas públicas voltadas à população negra, o autor deste livro propunha a coletividade afro-brasileira como ator e autor de um elenco de ações e de uma proposta de organização nacional para o Brasil. Assim, sustentava e concretizava a afirmação de que a questão racial é eminentemente uma questão nacional.

O quilombismo antecipa conceitos atuais como multiculturalismo, cujo conteúdo está previsto nos princípios de "igualitarismo democrático (...) compreendido no tocante a sexo, sociedade, religião, política, justiça, educação, cultura, condição racial, situação econômica, enfim, todas as expressões da vida em sociedade;" "igual tratamento de respeito e garantias de culto" para todas as religiões; ensino da história da África, das culturas, civilizações e artes africanas nas escolas.


O ambientalismo também se faz presente, no princípio que "favorece todas as formas de melhoramento ambiental que possam assegurar uma vida saudável para as crianças, as mulheres, os homens, os animais, as criaturas do mar, as plantas, as selvas, as pedras e todas as manifestações da natureza".

A propriedade coletiva da terra, o direito ao trabalho digno e remunerado, a prioridade para a criança, e a possibilidade da "transformação das relações de produção e da sociedade de modo geral por meios não violentos e democráticos" estão entre os princípios humanistas do quilombismo.

O texto antecipa, também, a mais recente inovação na abordagem das relações raciais, que parte do aspecto relacional sugerido pela ótica de gênero. A categoria "gênero" implica relação entre homem e mulher, assim deslocando o foco da tradicional "questão da mulher".

Da mesma forma, para compreender a questão racial é preciso focalizar tanto o privilégio desfrutado pelo branco como as desvantagens sofridas por negros. Já na década dos 1940 e 1950, Abdias e outros intelectuais negros, entre eles o sociólogo Guerreiro Ramos e o advogado Aguinaldo Camargo, vinham criticando o enfoque tradicional brasileiro sobre "o problema do negro".


Atribuem ao escritor Fernando Góes a sugestão, feita numa atitude de fina ironia, de se realizar um Congresso dos negros para estudar o branco. Essa sugestão e suas implicações são retomadas, e dotadas de semelhante carga de ironia crítica, no texto de O quilombismo. Trata-se de mais uma afirmação do racismo como fenômeno relacional mais amplo, profundo e complexo que aquele denotado pela constatação das chamadas "desigualdades raciais".

Nesta obra, merecem um capítulo à parte, além de serem focalizadas em todos os textos, as peripécias específicas da mulher negra, que envolvem aspectos múltiplos e complementares. A questão racial e a de gênero se tecem juntos numa teia que hoje se denomina "interseccionalidade", conceito de certa maneira antecipado no conjunto das obras do autor ao integrar a mulher negra como prioridade temática de sua análise. Mais de uma década antes de instituir-se a reserva de vagas para mulheres nas listas de candidaturas a cargos políticos, constava entre os princípios do quilombismo o seguinte:
12. Em todos os órgãos do Poder do Estado Quilombista - Legislativo, Executivo e Judiciário - a metade dos cargos de confiança, dos cargos eletivos, ou dos cargos por nomeação, deverão, por imperativo constitucional, ser ocupados por mulheres. O mesmo se aplica a todo e qualquer setor ou instituição de serviço público.

O conjunto de textos deste volume vem contribuir para o registro histórico de aspectos pouco divulgados do pan-africanismo, um dos mais importantes fenômenos do século XX. Demonstra também uma continuidade e coerência com assuntos eminentemente contemporâneos, pois reconhecemos nestes ensaios, em particular no ABC e nos Princípios do Quilombismo, a formulação de idéias e polêmicas ainda hoje emergentes.


A atualidade de O quilombismo não se esgota nos temas que apontamos. Creio que cada leitor irá vislumbrar, para além dessas questões, outras talvez mais interessantes.




Rio de Janeiro, outubro de 2001
Elisa Larkin Nascimento

BIBLIOGRAFIA

MOORE, Carlos (2002). Abdias do Nascimento e o surgimento de um pan-africanismo contemporâneo global. In: Nascimento, Abdias do. O Brasil na mira do pan-africanismo. Salvador: CEAO/ EDUFBA,.

NASCIMENTO, Abdias do (2002). O Brasil na mira do pan-africanismo. Salvador: CEAO/ EDUFBA.

__ . (1982[1968]). O negro revoltado, 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. [1ª ed. Rio de Janeiro: GRD].

__ . (1966). Carta aberta a Dacar. Tempo brasileiro, v. 4, n. 9/10, 2. Trim, 1966. [Diário do Congresso Nacional, suplemento, 20 abr., p. 15-17, lida na Câmara dos Deputados pelo então deputado Hamilton Nogueira.] In: Nascimento, Abdias do. O Brasil na mira do pan-africanismo. Salvador: CEAO/ EDUFBA, 2002.

Trechos do Prefácio do livro O Quilombismo, 2ª ed. (Brasília/ Rio: Fundação Cultural Palmares/ OR Editora, 2002).

Artigo original publicado @ http://abdias.com.br

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